Ignácio de Loyola Brandão: 'A cultura é imortal'

O escritor e imortal Ignácio de Loyola Brandão acaba de terminar um novo romance, que se passa no Brasil da pandemia, conta histórias sobre Sartre, Hitchcock e seu livro Zero, marco na ditadura. Ele diz que o discurso de Fernanda Montenegro na ABL foi o mais deslumbrante da história da Academia.

15942449365f063f48c567b_1594244936_3x2_rt"Vivi na posse de Fernanda Montenegro um momento histórico, para mim, tão importante quanto certos momentos da minha vida".
 
Ignácio de Loyola Brandão tem impressionante precisão para contar histórias. Aos 85 anos, o traço detalhista de jornalista permanece no araraquarense imortal. Fala com riqueza como se editasse um texto em tempo real. Eleito em 2019 para a Academia Brasileira de Letras, Loyola assistiu na primeira fila ao discurso memorável de Fernanda Montenegro na ABL. Para ele, a Academia vive um momento especial com a eleição da atriz e do cantor Gilberto Gil. “As pessoas não sabem o que é a Academia”. Com a noto riedade dos artistas, vão conhecer mais.
 
O escritor não para. “Vou existindo”, diz, sobre o sentido da vida. Acaba de entregar para a editora Global seu novo romance com o título provisório Deus, Por que Você Não Diz Logo o que Quer de Nós, frase de Simone Beauvoir. “O romance se passa no Brasil da pandemia, quando ninguém fica vivo.
 
O Brasil é apenas um imenso túmulo. E quando você vê de cima, naqueles satélites, é um país recortado de túmulos brancos”, entrega. Na sua ficção de 400 páginas, o tempo passou a andar para trás.
 
Como é ser imortal?
É igual ser mortal. Na Academia temos essa brincadeira: somos imortais porque não temos onde cair mortos. Você pertence a um grupo seleto que discute problemas da cultura, da linguagem, da ficção. Promove-se cursos. Um momento importantíssimo para a ABL foi a eleição da Fernanda Montenegro. Porque as pessoas não sabem o que é a Academia. Ah, o que a Fernanda escreveu? Não é isso. Não tem atriz ou ator maior do que ela neste país. E fez o mais deslumbrante discurso de posse que eu vi. Para fazer o meu discurso, li todos antes. Ela falou do teatro, dos grandes autores, dos grandes personagens, de cultura e de liberdade. Ela ia fazendo a relação com o momento atual, quando estamos começando a ter censura. O governo pede que se feche o Lollapalooza porque foi lá Pabllo Vittar e fez um gesto. Isso é o começo da censura. E Fernanda, sem citar isso, citando Shakespeare, Nelson Rodrigues, Antígona, ia dando pedaços do Brasil. Pela primeira vez vi alguém interpretar um discurso. No final, disse: “Resistiremos: somos imortais.” Ou seja, a cultura é imortal. Foi um momento de virada. Vivi na posse de Fernanda um momento histórico, para mim, tão importante quanto certos momentos da minha vida.
 
Que momentos foram assim tão importantes?
A tarde em que entrevistei Giulietta Masina no hotel Jaraguá. Os dois minutos que tive com Fellini, em 1963, em um café em Roma, em que ele estava selecionando o elenco para o filme Julieta dos Espíritos. Ele desenhava as pessoas. Perguntei: o senhor escolheu alguém? Ele disse: “Não vim escolher ninguém. Vim pegar detalhes físicos das pessoas para montar os personagens”. Foi uma grande lição. E minha primeira entrevista importante foi em 1958 com Juscelino Kubitschek. O JK veio andando pelo interior de uma fábrica que ele inaugurou. Eu, tímido, disse: “Presidente, sou da Última Hora. E ele: “Fala, meu filho, o que você quer?” e deu um sorriso. Eu tinha duas perguntas. Deu manchete. Mal eu tinha entrado no jornal. Foi comovente para mim.
 
E como foi o dia em que foi buscar Alfred Hitchcock em casa para um ensaio na revista onde era o editor?
Em 1967, eu trabalhava na editora Abril, na Claudia, contratado pelo Thomaz Souto Correa e pelo Luiz Carta. Fiquei anos na Claudia [e depois na Vogue Brasil, como diretor]. E havia uma edição internacional por ano. Thomaz avisou: “Vamos para Hollywood”. Vibrei. Fomos com um grupo da Rhodia, uma das modelos era a Mila Moreira, que foi amiga de uma vida. Fomos fazer um ensaio de moda com o Hitchcock. Buscamos o Hitchcock em casa. Foi ideia dele mudar a locação para um frigorífico em Los Angeles. A foto foi no meio de carnes sangrentas. Mila Moreira contou que ele se despediu dela com a frase espirituosa: “Very nice to meat you”. Ele fez o jogo de palavra com a carne [“meat” em vez de “meet”]. E, no final, nós nem colocamos isso na matéria. Tontos. 
 
E a história da palestra do Jean Paul Sartre em Araraquara?
Foi 1960. Ele veio de Recife e a USP não conseguiu que ele fizesse uma palestra em São Paulo. O diretor da universidade de Araraquara o atraiu para lá. O pai do (dramaturgo) Zé Celso Martinez Corrêa tinha um carro, um Hudson. Ficou à disposição para dar uma volta com o Sartre e a Simone Beauvoir. A Simone estava num mau humor terrível. Foram dar uma volta, mas o carro quebrou e tiveram que achar outro. Naquele dia, em Araraquara, estava tendo um jogo do Ferroviária e do Santos, que perdeu de 4 a 1. Dizem que o Pelé cruzou com o Sartre no meio da rua central. Durante anos isso saiu, mas eu, que cobri para a Última Hora, desmenti. Porque o jogo já estava sendo jogado. E a piada é a esquina que se chama esquina de Sartre e Pelé. Eles teriam se cruzado ali.
 
igna´cio-loyola“Para mim, viver não era passar, era deixar uma marca. Queria escrever como Hemingway. Até que fui descobrindo quem era Ignácio de Loyola. Eu vou existindo”.
 
Você sempre gostou de cinema?
Eu era um garoto que adorava cinema, mas não tinha dinheiro. Meu pai era ferroviário. Em Araraquara tinha dois cinemas, bonitos, chiques. Um dia soube que crítico de cinema não pagava entrada. Descobri que havia algo que se chamava permanente. O cinema entregava para cada jornal um passe para que o dono fosse ao cinema de graça. Um dia fui à Folha Ferroviária e perguntei para o dono era um velhinho, amigo do meu pai. “Meu filho, não existe crítico em Araraquara”, disse. Eu lia todas as críticas de cinema possíveis. Recortava dos jornais, fazia álbuns. Um dia montei uma crítica de um filme, de Rudolph Valentino. O jornal gostou, publicou e pediu mais. Tinha 16 anos. Foi quando comecei no jornalismo. As pessoas liam minhas críticas e virei importante no ginásio. O professor de matemática adorava cinema, e como eu era zero em matemática, ele dizia: “Ignácio, vou resolver o problema para você”. Então eu passava nas provas porque fazia crítica de cinema.
 
E qual era seu sonho na época?
Sonhava ser diretor de cinema. Então, virei crítico de cinema, mas tinha que acabar o curso. Eu era da turma do Zé Celso. Crescemos juntos, nossas mães eram catequistas, o pai do Zé Celso era rico, e o meu era ferroviário. Mas a gente era amigo. Minha turma foi embora e só eu fiquei em Araraquara porque estava repetindo o científico. Quando fui fazer o último exame oral, o professor disse que me daria uma equação. Tinha 40 jovens da classe média de Araraquara, bonitas e bem-vestidas, olhando para mim e para a equação. Comecei a escrever na lousa todos os símbolos matemáticos que me vinham à cabeça e as moças encantadas, achando que eu estava resolvendo o problema. Eu, um menino feio, recusado sempre... Enchia lousa. O professor me chamou à sua mesa e admiti que aquilo não fazia sentido, mas não podia fazer feio. “Pode ir embora Ignácio, a nota é 10”. Ele explicou: “É 10 pela loucura, pelo delírio. É 10 pela fantasia. Vai embora dessa cidade porque o teu mundo é o da imaginação.” E daquela manhã de 1956 até hoje, eu vivi da imaginação. Aquele homem entendeu o que tinha dentro de mim. Era o professor que gostava de cinema. Os professores fazem os escritores. 
 
O que mais lhe marcou da Semana de Arte Moderna?
A Semana de Arte aconteceu com um bando de granfinos, mas teve Mário de Andrade, Tarsila, Villa-Lobos. Foram avanços, não mudou tanto a vida de ninguém. Mário de Andrade está ligado à minha cidade. Em Araraquara, havia a Chácara do Pio Lourenço Corrêa, que era um fazendeiro rico e intelectual aparentado de Mário de Andrade. Dizem que quando Mário tinha umas crises nervosas, ia para a chácara do tio Pio. Contam que as crianças se reuniam para ouvi-lo contar episódios que havia escrito. Foi o primeiro eleitorado dele. Ele testava os textos ali, com a meninada. Uma dessas crianças ouvintes era Gilda de Mello e Souza, que foi mulher de Antônio Cândido. Gilda viu o nascimento do livro Macunaíma (1928).
 
Seu romance Zero foi publicado antes, na Itália, e censurado no Brasil em 1976. Como veio a ideia de juntar histórias censuradas?
Em 1964 veio o golpe. Quando o Última Hora foi fechado, um pelotão invadiu, bateu em um monte de gente, quebrou telefone. Quinze dias depois o jornal reabriu. Alguns tinham sido presos. O fundador, Samuel Wainer, exilado. E tinha uma pessoa nova dentro do jornal, o censor. Ficava numa mesa ao lado da minha, eu era o secretário de redação. Cada editoria fechava sua página e me trazia. Só que eu tinha que passar para o censor para que ele visse tudo. A primeira página passou. Aí ele me devolveu uma matéria com um carimbo: “Vetado”. Vetado por quê? Ele disse: “Não pergunte. Sabemos o que vocês podem publicar ou não. Nós mandamos no País”. E aí, intuitivamente, abri uma gaveta e joguei ali a matéria vetada. Tudo o que era proibido, fotografias,
caricaturas, matérias, entrevistas, eu jogava no gavetão. E quando encheu, levei para casa. Em um ano, tinha tudo o que a censura proibiu no meu apartamento. Por ideia de uma amiga, me dei conta de que tinha um livro ali. Tudo o que o Brasil não pôde ver estava ali. E fui montando um livro, que era uma loucura. Era o próprio personagem falando consigo.
 
O que significava?
Nada. Hoje, na pandemia, vejo pessoas falando sozinhas na rua, no celular. Zero acabou com 400 páginas. Mas publicar aquilo era ser preso. O dramaturgo Jorge Andrade sugeriu levar para a Itália. Era o único original, cópia carbono. O livro foi publicado lá e repercutiu. E aí quando saiu aqui, em 1975, esgotou a primeira edição em uma semana. Por um ano e meio, era como se não tivesse sido descoberto. Nenhum crítico disse “é o Brasil da ditadura”. Diziam: é um romance novo, estruturalmente complicado. Em 1976, veio a proibição. Em 1979, a liberação.
 
Estamos em 2022, como será seu novo livro?
Se passa na pandemia, no Brasil, quando ninguém fica vivo. E o Brasil é apenas um imenso túmulo. E quando você vê o Brasil de cima, naqueles satélites, é um país recortado de túmulos brancos. E o tempo vai retrocedendo porque, com o governo que há, que não digo qual é, nós chegamos na pré-história. O tempo passou a andar para trás.
 
Como é ter 85 anos?
Você vai se adaptando, né? Escrevo um romance de 300 páginas e um livro de mil laudas (a biografia do banqueiro Aloysio Faria), mas uma escada de três degraus eu já tenho dificuldade. O termo imortal na ABL é curioso... É fácil. Cada um de nós faz um discurso. Tem que se referir aos membros anteriores da sua cadeira. Então, daqui a 100 anos, alguém vai dizer, o sétimo da cadeira foi Ignácio de Loyola Brandão, um homem esquisito que escreveu uns livros e um livro foi proibido e vão lembrar de mim. Você será sempre lembrado porque vão falar de você. Isso é a imortalidade.
 
E a mortalidade?
A morte é uma contingência. Estou tentando descobrir o que tem de cá. Depois que eu tiver do lado de lá, vou finalmente ver o que é. 
 
Qual é o sentido da vida para você? 
O sentido da vida é viver o dia a dia. Quando saí de Araraquara, aos 21, meu pai me levou na estação. Ele perguntou, você não quer ficar aqui? “Não, meu pai, não tem nada que eu queira aqui.” Ele falou: “Mas você quer trabalho ou emprego? No emprego, você ganha dinheiro para sustentar a família. Trabalho é o sonho”. Eu respondi: “Então quero trabalho, pai”. No fundo, eu queria ser alguém. Não queria ser igual a todo mundo. Isso era uma bobagem. Mas não queria levar uma vida que no final dissesse, puxa não aconteceu nada. Nun ca pensei em casar. Aconteceu, e eu adoro tudo o que aconteceu. Tenho uma mulher sensacional (a arquiteta Márcia Gullo) e uma filha sensacional (a cantora e atriz Rita Gullo), filhos sensacionais e uma neta linda. Mas, para mim, viver não era passar, era deixar uma marca. Queria escrever como Hemingway. Até que fui descobrindo quem era Ignácio de Loyola. Eu vou existindo.