João Carlos Martins, maestro: 'A música tem o poder de transformar vidas'
Sua história é uma sinfonia viva. Ao longo de 75 anos de carreira, o maestro e pianista, um dos mais aclamados intérpretes de Bach, transporta a emoção dos clássicos para os tempos contemporâneos e quer atrair novas gerações.
Para passar a ideia da fusão entre homem e arte, maestro e pianista, o fotógrafo Marcelo Navarro usou o efeito de dupla exposição nas fotos de João Carlos Martins.
Assim como as partituras do compositor alemão Johann Sebastian Bach, a vida de João Carlos Martins é marcada por paixões, desafios e glórias. Aclamado como pianista desde a infância em palcos do mundo inteiro, Martins conviveu e foi admirado por mestres como os pianistas Guiomar Novaes, Arthur Moreira Lima e Nelson Freire, e foi regido pelos geniais Herbert von Karajan, Leonard Bernstein e Zubin Mehta. Tocou com as maiores orquestras e os mais importantes músicos. A convite da primeira-dama Eleanor Roosevelt, estreou aos 20 anos no Carnegie Hall, em Nova York, onde se apresentou dezenas de ve- zes durante sua carreira. No entanto, ao mesmo tempo em que brilhava nos palcos mais prestigiados e frequentava os melhores estúdios de gravação para registrar as obras dos maiores compositores, Martins passava por sérios problemas de saúde que afetaram principalmente as suas mãos. Com resiliência e muita determinação, cada momento de dor intensa e frustação foi enfrentado com coragem. Foram 29 cirurgias complexas e muitos tratamentos doloridos. “Tenho driblado o cérebro a vida inteira, pois acredito na trajetória da esperança e da superação”, costuma declarar.
Um dos dribles dados no destino foi a mudança de profissão aos 63 anos. Como maestro, Martins tam- bém foi aplaudido em palcos internacionais e fundou uma orquestra, a Bachiana Filarmônica, que hoje está atrelada ao SESI-SP. Não por acaso sua vida já foi con- tada em filmes, livros e exposições. Nenhuma obra ficcional seria capaz de narrar uma história tão rica e repleta de reviravoltas espetaculares como a sua. Aos 84 anos e 75 de carreira, Martins relembrou alguns desses momentos na conversa com Robb Report Bra- sil, em um intervalo dos longos ensaios diários que faz em seu apartamento nos Jardins, em São Paulo.
O senhor completou 75 anos de carreira em setembro. O que vem pela frente?
No dia 9 de maio, tocarei no Carnegie Hall, em Nova York. Será minha despedida dos palcos internacionais e a trigésima vez que me apresento na cidade onde morei por anos. Para celebrar a ocasião, a organização da casa venderá os ingressos a US$ 30. Vai ser emocionante. Também que- ro retomar, em 2027, quando completar 87 anos, minha carreira internacional como pianista com um repertório para minha mão esquerda.
O que o público ouvirá neste concerto tão especial?
Já estou estudando para essa apresentação. Na primeira parte vou reger Bach e Heitor Villa-Lobos. A segunda parte terá a Cantata Brazilis, composta pelo músico que considero sucessor de Villa-Lobos, o niteroiense André Mehmari. A regência será feita por outro maestro, pois estarei ao piano, usando minha luva biônica na mão direita.
A luva biônica é um dos momentos extraordinários da sua vida. Como ela chegou — literalmente — às suas mãos?
Elas foram criadas e entregues a mim pelo designer de produtos Ubiratan Bizarro Costa, depois de um concerto que fiz em Sumaré (SP). Com elas, eu pude voltar a tocar.
O que o fascina mais na obra de Johann Sebastian Bach?
Bach é a síntese de tudo o que aconteceu na música e a profecia do que viria a acontecer. Meu pai amava Bach e acabou me influenciando. Ele nunca pôde tocar piano, pois sofreu um acidente em que perdeu um dedo, mas incentivou a mim e aos meus irmãos a admirar música clássica e a tocar. Meu irmão José Eduardo também é um ótimo pianista.
Piano ou regência? O que o emociona mais?
A regência veio aos 63 anos, quando os médicos me disseram que eu nunca mais poderia tocar piano profissionalmente. Formei a Orquestra Bachiana Filarmônica e considero cada um dos músicos como uma tecla do meu piano. A emoção que procuro transmitir com a regência é a mesma que busco ao tocar.
O que mais o motiva a seguir desenvolvendo projetos?
Meu trabalho social com a Fundação Bachiana, que já levou milhares de crianças ao universo da música clássica, é uma grande motivação. Tocamos em presídios e favelas e ver a emoção no rosto das pessoas, especialmente em situações difíceis, é algo que me comove.
Como aproximar o grande público da música clássica?
Sempre convido artistas populares para tocar comigo. Já toquei com Maria Bethânia, Milton Nas- cimento, entre outros. Isso cria uma ponte com o público que geralmente não teria esse contato.
O que costuma ouvir quando não está estudando música?
Ouço pouca música, já que dedico o dia inteiro a ela. Quando algo realmente me chama atenção, ouço com cuidado. Prefiro tocar música a ouvi-la.
Quais músicos o senhor admira?
Nelson Freire era um gênio, mas os dois pianistas que mais me emocionaram foram Guiomar Novaes e Arthur Moreira Lima. Entre os jovens, destaco o pianista Cristian Budu e o violinista Guido Sant’Anna, e, claro, André Mehmari.
João Carlos Martins é um dos maiores intérpretes de Bach, autor das partituras que se fundem à imagem do maestro e pianista.
Vinil, CD ou Spotify?
Tenho uma relação limitada com as plataformas. Não ouço muita música fora do trabalho, mas respeito a qualidade do vinil.
O senhor é um exemplo de como a paixão pela arte pode transformar vidas. Como vê o papel da música na formação do caráter e no desenvolvimento humano?
A música tem o poder de transformar vidas. Acredito que ser feliz é dar felicidade, e a música é uma ferramenta poderosa nesse processo. Minha trajetória sempre foi marcada pela superação e pelo amor à arte, algo que molda o caráter.
Carmen Valio tem sido sua companheira há muitos anos. Ela é sua musa inspiradora?
Estamos juntos há 25 anos. Ela sempre adivinha o que eu preciso e o que eu gostaria de fazer. É uma parceira incrível em todos os momentos.
Quais foram as situações mais emocionantes?
Um delas foi quando retomei a carreira em 1978, no Carnegie Hall. O público me aplaudiu de pé por quase 10 minutos. Outro momento marcante foi quando precisei interromper minha carreira, em 1971.
Como descreveria o luxo em sua vida?
Luxo, para mim, é chegar ao fim de um concerto sabendo que consegui transmitir emoção ao público. Que meu coração chegou ao coração deles.
Quais são seus pequenos luxos diários?
Gosto de futebol, torço para a Portuguesa e quando jovem jogava. Inclusive um dos problemas que tive com uma das mãos foi causado por uma queda durante um jogo no Central Park, quando tinha vinte e poucos anos. Gosto de ficar em casa. Como viajei muito, prefiro momentos tranquilos, recebendo amigos e minha família. Faço ginástica e aos 84 anos me sinto estupendo. Brinco que costumo acordar de manhã como um velhinho de 100 anos, checo se meu nome não está nos obituários e, se não está, peço dois ovos fritos e vou à luta. Outro prazer é o convívio com meu cachorro, o Sebastian, um maltês. Sempre tive cachorros, mas este é especial.