Pilar del Río: 'Saramago olhava o Brasil todos os dias'

Desde que se despediu do companheiro há 12 anos, a jornalista espanhola Pilar del Río se dedica a zelar pela obra e a memória do único escritor de língua portuguesa a receber o Prêmio Nobel de Literatura. Ela narra os últimos anos do maior autor português em seu novo livro A Intuição da Ilha e diz que a lucidez não é para os egoístas.

_MG_40122Pilar del Río, no Sesc Pompeia, em São Paulo, horas antes do lançamento de seu livro A Intuição da Ilha.

Pilar del Río desembarcou no calor de Belém do Pará em agosto deste ano. Era a sua segunda visita à cidade, onde já tem amigos e conhece quase todos os pratos típicos, apesar de ser vegetariana desde criança. “Não havia carne no governo franquista. Assim, nunca comi, até hoje”, contou a jornalista e ativista espanhola à Robb Report Brasil. Foi em Belém que começaram as comemorações pelo centenário de José Saramago. Único autor de língua portuguesa a ganhar o Nobel, maior prêmio de literatura mundial, o escritor português completaria 100 anos em 16 de novembro deste ano.

José e Pilar se conheceram em 1986. Foram 25 anos de uma história de amor incomum. Juntos, eram mais do que dois, como diria o poeta uruguaio Mario Benedetti. A dimensão do quanto um teve importância na vida do outro está explícita na obra que veio depois: o legado do escritor vem sendo continuado por Pilar à frente da Fundação Saramago, em Lisboa. E parte dele, agora relatado no livro escrito pela jornalista durante a pandemia.

Em A Intuição da Ilha, Pilar relata os dias do escritor português em Lanzarote, a ilha próxima à costa do Marrocos, onde ele viveu o último ciclo de vida e escreveu alguns de seus trabalhos mais relevantes, como Ensaio sobre a Cegueira. Na obra, Pilar divide com o leitor os momentos vividos a dois e as emoções compartilhadas na “Casa de Lanzarote”. A seguir, uma conversa exclusiva da jornalista com Robb Report Brasil, numa tarde fria no galpão Sesc Pompeia, em São Paulo, onde ela posou para as fotos que ilustram a entrevista.

_MG_40812Pilar del Río: 'Saramago olhava o Brasil todos os dias'. 

Por que escrever um livro sobre os dias de Saramago em Lanzarote?

Foi no silêncio da pandemia e pela nostalgia dos trabalhadores da casa de Lanzarote. Eu me explico: a equipe de guias que todos os dias apresenta os espaços onde José Saramago escreveu mais da metade de sua obra, jovens com sensibilidade que explicam a vida cotidiana, dividem leituras com as visitas. Eles sentiam saudades, precisavam do contato com o autor com o qual de alguma forma convivem. Foram eles que me incentivaram a escrever para que a memória de José Saramago em Lanzarote não se perdesse. Queriam seguir explorando. Uma das guias tem uma editora muito, muito pequena, e me disse que queria publicar meus textos. Outro guia fez as ilustrações. O livro nasceu na cozinha da casa, assim como tantos projetos de quando José Saramago vivia.

Como define A Intuição da Ilha?

O livro todo é um ato de amor. Os últimos tempos em Lanzarote foram os mais ricos na obra e na vida de Saramago. Foram anos de muito trabalho, e também de muita paz. Por mais que tenha escrito livros muito duros, como Ensaio Sobre a Cegueira e A Caverna, ele era um homem sereno, que na ilha encontrou seu lugar no mundo. Era de onde partia quando viajava e onde chegava com novas experiências. Era o lugar onde queria respirar, olhar as estrelas e sentir que fazemos parte de um universo grande e lindo, no qual, como seres humanos, somos pouca coisa, mas ainda assim temos que nos comportar com a responsabilidade de sermos tudo. Porque somos tudo no planeta Terra, que é nossa responsabilidade.

Hoje a sra. vive em Lisboa. Já se sente mais em casa, quase portuguesa?

Sou portuguesa, me tornei portuguesa para que o país, com a morte de José Saramago, não perdesse um habitante… Agora de verdade, me tornei portuguesa para continuar o legado de José Saramago na sede da Fundação José Saramago e também para pagar os impostos em Portugal, coisa que Saramago sempre fez. Era seu dever e eu o assumi, dando continuidade a ele. Ainda que pague mais do que pagaria se continuasse com minha nacionalidade de nascimento.

Por que a sra. não acredita que haverá futuro se ele não for comandado por mulheres feministas?

Porque a história da humanidade governada por homens tem sido guerras, batalhas, conquistas. Ou seja, coisas odiosas … Por qualquer cidade europeia, mas acredito que também daqui, quem são os que estão nos centros das praças? Conquistadores, guerreiros, homens com espada, a cavalo. As mulheres têm o poder da observação e morrem de rir com o que os homens fazem. Acha que uma mulher no poder traria o coração do D. Pedro para aqui? É até nojento.

A sra. tem um conceito de família bem mais amplo, quase revolucionário. Pode detalhar como a entende?

Meu conceito de família abarca a humanidade. Não tem nada a ver com geografia, tenho 14 irmãos e tenho a capacidade de entender que a família é algo muito maior. O biológico não manda, não é
um privilégio. O privilégio é o racional, a solidariedade. Vários dos meus irmãos, ao invés de terem filhos biológicos, têm filhos adotados.

Por quê?

Já existem crianças nascidas. Para que você vai ter um filho? O que você tem que conservar, se já existem crianças? Por que vou gostar mais de um rapaz que nasceu de mim do que de um menino que
está pedindo limão? Desculpa, esse menino que está pedindo limão precisa mais de mim do que meu filho, que teve acesso à educação. Sinto muito, é assim. Não sou burguesa, não sou pequeno burguesa.
Detesto os critérios da pequena burguesia.

A sra. se considera uma heroína da resistência?

Heroína não, mas uma ativista civil, sim. Porque tive acesso à educação, tive acesso à leitura, tive privilégios demais para não devolvê-los. Mas é simplesmente isso. Tive acesso a situações que outros não têm. E cada vez que escuto “chegou uma balsa com 80, 90 pessoas, que vêm navegando da África às Canárias, ou à Espanha ou à Itália, gente por três dias navegando, sem água, sem comida, com crianças. Eu me vejo nessas pessoas.

Num dos trechos de A Intuição da Ilha, a sra. conta que na despedida de Saramago, já no cemitério, falou-se de Jorge Amado e de seu medo de voar. Pode lembrar essa história?

O corpo de José estava sendo levado, e ninguém dizia nada. Então eu falei. Falei do medo de voar de Jorge Amado, e que um dia estavam no avião, iam de Paris a algum lugar, e Zélia (Gatai, escritora e esposa do escritor) estava dormindo. E de repente Jorge diz: “Zélia, estamos aqui”. E nesse momento o piloto disse: “Atenção, temos um problema com o motor. Vamos fazer um pouso de emergência”. E então Jorge Amado, em um ataque de pânico, começou a pedir “um jornal, um jornal, me dá um jornal”. E então Zélia lhe disse: “Vamos morrer e você discute por um jornal?”. Jorge respondeu: “Você quer que eu morra sem saber o que aconteceu no mundo? Quer que eu morra sem saber o que aconteceu?”. E então lembrei dessa história para dizer… “Vamos contar
ao Saramago o que, segundo os jornais, aconteceu ontem no mundo: morreu uma pessoa ... interessante, uma pessoa… uma grande pessoa”.

_MG_40282Desde que se despediu do companheiro há 12 anos, a jornalista espanhola Pilar del Río se dedica a zelar pela obra dele.

Saramago faria 100 anos neste novembro de 2022. Se estivesse vivo, como imagina sua opinião sobre o que está acontecendo no mundo hoje…?

Sempre me atenho ao que ele disse e ao que fez. Ele escreveu Ensaio Sobre a Cegueira, sobre cegos, pessoas que acreditam que porque têm suas vidas pessoais resolvidas, a história está resolvida. Não está, porque as secas a cada dia são maiores, os incêndios também, as pandemias… vamos responsabilizar um vírus pela pandemia que sofremos? Não seríamos nós, seres humanos, que não respeitamos os ciclos da natureza? Provocamos secas no planeta, na África, há países inteiros com seca. Se aumentamos em vários graus os níveis de temperatura, também abrimos portas para vírus e temos pandemias. E isso não é um castigo de Deus e muito menos produzido em laboratório. Fomos nós, com nossas vidas às vezes tão estúpidas. Então, Ensaio Sobre a Cegueira descreve uma pandemia.

E Ensaio Sobre a Lucidez?

É verdade que, depois de Ensaio Sobre a Cegueira, ele escreveu Ensaio Sobre a Lucidez. Mas a lucidez custa muito a ser trabalhada. A lucidez não é para pessoas egoístas. A lucidez é uma forma
de pensar o mundo onde caibam todos os seres humanos, uma forma ativista. Saramago escreveu esse livro. Quantas pessoas o leram, não sei.

Como acha que Saramago estaria vendo esse Brasil de hoje?

José olhava o Brasil todos os dias. Quando ele era jovem, esteve tentando emigrar. Não pôde fazê-lo, mas o Brasil era sua terra. Vivia o desgosto da pobreza histórica, da desigualdade. José viveu com alegria o final da ditadura e a chegada da democracia. Viveu com angústia a política que alguns praticavam. Depois, a esperança de Lula, a posse de Dilma, as políticas de bem comum lançadas. Acompanhava as notícias diariamente. No Brasil estavam muitos de seus melhores amigos e amigas, gente da cultura imprescindível. A casa de Lanzarote está cheia de Brasil.

Como foi para a sra. viver a pandemia?

Para mim, como sou uma privilegiada, foi tudo um privilégio, porque não tinha que sair todos os dias para trabalhar. Ficava em casa e podia ler. Mas eu via e sentia o horror que era a pandemia. Sentia o terror das casas pequenas, apertadas, com todo mundo dentro, com as pessoas sem trabalho, sem comida. Então, isso doía. Era um profundo desespero. Fomos ativistas, um grupo de gente, do México, do Brasil... Eu podia sair das 20h às 21h para ir ao supermercado. E na porta havia caixas para que os clientes deixassem produtos para os que não tinham nada. Então comprávamos e deixávamos os produtos ali. E vinham pessoas que recolhiam um quilo de arroz, uma garrafa de óleo, e deixavam para os demais. Essas foram as cadeias de solidariedade que formamos. O Exército de Portugal teve um papel magnífico. O Exército não estava preparado para matar nem para atacar nem para defender nenhum presidente (que não era atacado). O Exército fazia comida para a população carente, e todos os dias nas portas dos quartéis havia filas de gente indo buscar comida para suas famílias. Esse é um Exército patriota.

A sra. é otimista com o mundo?

Não, sou realista. E eu sei o que faço, e isso é tudo. Ou seja, se cada pessoa fizesse o que pode, iríamos em frente. Mas se estamos confortáveis e nos acomodamos…

Saramago fez à sra. uma das mais bonitas declarações de amor: “Eu teria morrido um homem mais velho se tivesse morrido antes de conhecer a Pilar”. A sra. tinha a percepção dessa influência sobre a maneira dele olhar o mundo e a vida?

Nós tínhamos um projeto de vida e de trabalho em comum. Nos ajudamos no que pudemos, nos mantivemos mutuamente quando algum dos dois apresentava debilidades. Ele me ajudou a superar momentos difíceis de trabalho e desconsolo. Eu estive com ele em suas inquietações, sonhos e desejos, também em suas tristezas e doença. Decidimos fazer a vida juntos e a fizemos. Não tem a ver com
o casamento. Nosso projeto ia além da fórmula do matrimônio. Escolhemos ser dois, sempre dois, mas vivendo juntos, em liberdade e confiança.

Foram 25 anos com ele e agora 12 sem ele, no que a ausência é mais difícil?

Ter que tomar decisões sem poder falar sobre elas. Sabíamos que a morte poderia vir se a natureza se comportasse normalmente (eu poderia ter morrido antes, também) e tínhamos isso assumido. De alguma forma, posso dizer que vivemos juntos o luto.

Saramago era ateu, e a sra.?

Não acredito em Deus. Não me interessa o que está além. É uma alienação, um conto para controlar os seres humanos durante o tempo real que temos. A vida é para ser vivida na Terra, não no suposto céu.

Na sua visão, qual é o sentido da vida?

O sentido da vida é vivê-la e vivê-la na Terra e em companhia dos quase 10 bilhões de pessoas que habitam o planeta. Que eu não seja indiferente a ninguém.

Como encara a morte?

A morte é consequência da vida. Terminamos e ponto. Como os plantios se acabam e como se acaba o dia. Tomara que tenhamos vivido de forma harmoniosa antes que o final chegue. E tomara que seja um final tão sereno como a mudança de estação do verão ao outono. Não tenho medo da morte porque procuro viver solidariamente, atenta aos demais, integrada à coletividade humana.

Como a sra. enxerga os próximos anos deste seu trabalho à frente da fundação, deste legado?

Se penso, começo a chorar. Ou seja, é melhor fazer o que é preciso a cada dia, sabendo que meus dias são limitados, que durarão até certo ponto. E que outros dias virão e espero que melhores. Eu tenho uma enorme, enorme confiança na juventude, penso que deixamos a eles um mundo repugnante. E espero que os jovens venham para destituí-lo, quanto antes melhor. Eu confio nos jovens.