Vive La Majesté!

Entrevistamos a mais parisiense das brasileiras. A ex-modelo, empresária e viúva do magnata Jean-Luc Lagardère é uma embaixadora informal do Brasil na França. As fotos de Bob Wolfenson, idealizadas por Paulo Borges para homenagem no SPFW há 15 anos, desvendam o poder de uma das mais mulheres mais influentes de sua geração.

WhatsApp Image 2024-04-15 at 13.00.15A ex-modelo, empresária e viúva do magnata Jean-Luc Lagardère é uma embaixadora informal do Brasil na França.

Antes de tocar a campainha, uma lembrança veio de estalo “Ami, n’entre pas san désir (amigo, não entre aqui sem desejo)”. Era um trecho de umverso de Paul Valèry grafado em 1937 na entrada do Museu do Homem, na capital francesa, evocando este estado de espírito como dica para decifrar tesouros. Soou como um conselho do além, mas nem precisava. Já estava suficientementeeufórica com a visita à residência paulistana de Le Majesté, apelido carinhoso cunhado pelo jornalista e amigo Bruno Astuto. O entusiasmo foi cultivado por dias, desde que a nossa publisher, Celia Pompeia, obteve dela o definitivo “sim”, atendendo ao convite para estar nesta edição dedicada a Paris. Alegre, generosa e gentil, Bethy Lagardère surgiu descendo as escadas. Pronta para as fotos, apresentou o maquiador Michel Nakamura, “um dos melhores do Brasil”, e pediu que os cliques fossem naturais.

Entrar no universo particular da dama que abraçou Paris em 1972 e que Paris abraça desde então como uma embaixadora informal do Brasil na França, pede um exercício respeitoso de observação. Minúcias,como a paixão por Nick, um jack russell terrier com quem ela fala em francês, ajudam a enxergar sua personalidade autêntica. Esse traço, por certo, moldou a trajetória que transformou a jovem Elisabeth Pimenta Lucas em uma das mulheres mais influentes da França.

A modelo belo-horizontina de 20 anos, que encantara o costureiro Denner, desfilou para Emanuel Ungaro, Yves Saint Laurent, Azzedine Alaia e Guy Laroche. Foi considerada pela Harper’s Bazaar uma das mulheres mais elegantes do mundo. A mecha branca que desde 2003 emoldura o rosto belo e forte, ela cultiva em memória ao marido, o empresário Jean-Luc Lagardère, gigante na área da aviação e mísseis (Airbus e Matra) e na comunicação (editora Hachette, que publica Elle, Marie Claire e Paris Match). O luto pela perda de Jean-Luc deixou seus cabelos brancos.Ao retomar a vida, ela dedicou-lhe a mecha.

O casal tinha uma agenda intensa, e o arco de atuação do industrial e publisher alcançava o cinema. Produziu o filme Cyrano de Bergerac, com Gerard De-Pardieu, Oscar de Melhor figurino em 1991.

A trajetória de Bethy Lagardère demarca um ponto equidistante entre a locomotiva social — e suas amizades com gênios da moda, artistas, estadistas como o ex-presidente francês Jacques Chirac (1932-2019) — e a mulher que ama cozinhar em casa e, aos 75 anos, segue ávida por leituras. Vive la Majestè.

WhatsApp Image 2024-04-15 at 12.59.43Bethy Lagardère, na foto de Bob Wolfenson, para a revista FFW MAG!, de Paulo Borges, criador e diretor do SPFW, em edição dedicada a ela, em 2009.

"Paris era um sonho de infância"

Sua afeição pela simplicidade se materializa em luxos como o pastel feito com a massa de Botucatu, que ela manda buscar onde quer que esteja, em Paris, Roma ou São Paulo. Assim, com quitutes perfeitos, ela falou à Robb Report Brasil.

O que une a mineira e a parisiense Bethy Lagardère?
Se você tivesse me perguntado isso no princípio das minhas aventuras, não saberia responder. Mas quando olho hoje para o passado, acho que uma vontade do mineiro é sempre ultrapassar as montanhas. Não somos banhados pelo mar. Essa é uma das razões pelas quais penso que o mineiro tem tempo para se cultivar. Ivo Pitanguy era mineiro. Pelé. Drummond. Santos Dumont. Aleijadinho. Todos eram mineiros. São pessoas que atravessaram fronteiras. As montanhas me fizeram, de certa forma. Detesto montanhas, mas elas me incitaram a atravessá-las. Eu não enxergava horizonte, mesmo estando em Belo Horizonte. Numa cidade montanhosa, você sonha. Minas tem cidades belas, mas talvez eu quisesse um outro horizonte. Conquistar Paris era um sonho de infância.

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Bethy e Nick, seu jack russell terrier, em sua casa em São Paulo: "Eu nunca apresentei um pão de queijo na Europa sem que as pessoas ficassem extasiadas".

Como foi encontrar esse horizonte nas passarelas parisienses?
Foi complexo e transformador. Estudei em escolas de congregação francesa. Adorava História da França, mas quando cheguei vi que não tinha bagagem. Então me joguei de alma. Em 1972, você não vivia a moda como hoje. A gente se apresentava nas casas de alta costura para tentar fazer parte de uma equipe de modelos que trabalhariam o ano todo nas coleções. Busquei me adaptar, vivendo como os franceses.
Era um dever imperativo. Eles têm códigos, como nós. Aprendi a pontualidade. Nunca mais cheguei atrasada. E não espero, porque a idade não permite. Se não for pontual, dou bye bye e vou embora alegremente.

Você se lembra da primeira vez em que pisou em Paris?
Eu tinha 20 anos. Você está entrevistando um antiquário (risos). Em 1972, com 21 anos você não podia sair de casa. Hoje, com 14 anos pode-se ir a qualquer lugar do mundo, fazer um métier como o meu, ganhar fortunas sem problemas, inclusive com apoio dos pais. Eu enfrentei a tradicional família mineira. No instante em que a porta do avião se abriu, senti medo. No dia seguinte, veio o deslumbramento com um país que tem estrutura.

Entre os lugares públicos, o que mais lhe toca?
Não há um dia em que você passe aos pés da Torre Eiffel e não ache maravilhoso. Louvre, Opera de Paris. Jardin des Tuileries, Bois de Boulogne, Luxembourg. Meu monumento preferido: Les Invalides. Mas o que é fascinante em Paris é, como mulher, poder ir a qualquer lugar sozinha. Essa foi uma das grandes lições que tive na vida. A primeira coisa que se aprende em Paris é o senso de liberdade. O francês não tem limite para a liberdade. Você não tira a liberdade do francês no cotidiano, na política. Foi derramado muito sangue (na História) para isso, então a gente respeita. O francês quer ser livre. E você aprende a ser. Não tenho o menor complexo de entrar sozinha em restaurante ou teatro. Às vezes meu marido não podia me acompanhar. Eu ia perder?

Como foi o seu casamento?
O meu casamento foi discreto. Eu e meu marido apenas. Só um casamento civil. Nós não tínhamos idade para fazer olé olé. A possibilidade de ter conhecido horizontes diversos graças ao meu marido é um enriquecimento que poucos tiveram. Reconheço isso. O que conheço de tecnologia de ponta, querida... como seria se não tivesse vivido com um homem que criava tudo isso? Como mulher de um editor,
fui obrigada a passar algumas noites em claro e gloriosamente passei. Por quê? Eu quis buscar esse tempo para o conhecimento. Victor Hugo não se lê em um dia. Isso é uma bagagem que o francês tem
em seu solo e eu tive que criar essa bagagem.

E seus hábitos parisienses?
Quando se vive em Paris, você se acostuma às tradições. Tenho hábito de ir ao Café de Flore. Quando não vou, me sinto mal. A baguete é meu sofrimento. O dia em que provei uma baguete falei: nunca comi pão na minha vida antes disso. Todo ano tem o concurso da melhor baguete de Paris. Durante dois anos foi o Tunisiano (Makram Akrout, padeiro da Les Boulanger que foi fornecedor do Palácio do
Eliseu, sede do governo francês). Adoro ir no Le Voltaire. Vou há 50 anos. É barulhento? É. É longe? É. Mas guarda referências. O bolo, o doce. Sou fiel. É fascinante o L’Atelier, de Joel Robuchon, que faleceu mas deixou um legado imenso.

IMG_7440"Sinto falta do Karl (Lagerfeld). Ele tinha imaginação. Podia transformar bola de gude em bolsa e o mundo corria para comprar".

Como é a sua visão da experiência de luxo parisiense?
Vou fazer uma homenagem à minha mãe (Nair Pimenta), que perdi faz três meses. Mas a primeira experiência de luxo que tive foi com ela, muito antes de Paris. Essa visão de estar tudo impecável, aprendi com minha mãe. Tudo era feito à mão. Os vestidos tinham que ter renda. Mamãe tinha esse sonho de beleza, de luxo, de bordado. É lógico que, chegando em Paris, você vai para uma dimensão maior, astronômica. Você aprende o que é uma verdadeira prata, uma louça assinada. Quando se fala de luxo, o savoirfaire é francês. Na alta costura, na gastronomia, fala-se francês. Por essa razão
quis conquistar Paris.

O que é luxo para você?
Tudo pode ser um luxo na vida. Até o comportamento. E, quanto mais simples, mais luxuoso. Você não pode esquecer de onde veio. Senão, não vai aonde quer. Belo Horizonte é a cidade da minha infância. Nosso orgulho nacional é o pão de queijo. Sou purista. Tenho pavor de pão de queijo com parmesão, que não é nosso, é italiano e feito para massa. Eu nunca apresentei um pão de queijo na Europa sem que as pessoas ficassem extasiadas. Sou muito parisiense, mas guardo a mineirice. Quando me viu pela primeira vez, o (estilista) Denner gritou da escada: “Ela é um luxo!” Era o olhar dele. Eu não sabia. Acredito que o comportamento, a maneira de caminhar definem se aquela mulher é um luxo. Cada época tem seu critério de beleza. Acredito que isso paute o olhar dos grandes costureiros que mexem com o luxo supremo. Ele vê uma mulher de tal forma, mas o que ele viu na infância dele? Você pode olhar para a Sophia Loren, por exemplo, e falar que ela é bonita, mas posso não adorar.

Quem é referência para você?
Tive amizade com quase todos. Guy Laroche foi um grande amigo. Karl Lagerfeld também. São seres que me deram não só amizade, mas me ensinaram muito. Gostei da minha passagem por trás das cortinas. Foi onde aprendi. Como modelo, via a criação, o sofrimento da escolha de uma cor. Via o desenho no papel. Aprendi até com meu corpo. Olha que legado deixou Yves Saint Laurent. Ele se inspirou em Picasso, no Marrocos. Há toda uma trajetória importante. (Azzedine) Alaia transformou o corpo da mulher do século 20 como ninguém. Você não vê o logotipo, mas o distingue em qualquer lugar. Isso para mim é a essência do luxo. Por que tenho que tatuar o que estou usando? Uma vez falei: “Alaia, vão procurar alguém para a Chanel, não deixe de ir!” Depois, perguntei: “Como foi a reunião?” Durou cinco minutos. Perguntaram como interpretaria a mulher Chanel. Ele respondeu: “Só ela vai saber”. Pretendia tirar o logo da Chanel. Por isso, não foi. Alaia não precisava de tatuagem para definir a beleza de uma mulher. Aí pegaram o Karl (Lagerfeld). Hoje, infelizmente a moda foi para um campo que não é o meu. Não me reconheço, a não ser no Armani. Ele tem técnica, e não se deixou influenciar pelos elementos modernos. Sinto muita falta do Karl (Lagerfeld). Ele tinha imaginação, fantasia. Tudo era possível. Podia transformar uma bola de gude em bolsa e todo mundo corria para comprar.

E o cinema? De qual filme tem mais lembrança?
Meu marido era também produtor de cinema, e eu era uma apaixonada, costumava fazer um programa bem francês: ir ao cinema às 8h da manhã. Lembro mais do nosso (Cyrano de Bergerac, com Gérard Depardieu, dirigido por Jean Claude Rappeneau, com produção executiva de Jean-Luc Lagardère). Jean-Luc quis fazer o filme, que fez sucesso internacional. Ganhou um Oscar. A festa foi em um cinema. A sala estava em convulsão. Lembro de todos chorando. Com certeza vesti um Ungaro, porque ele era meu amigo e vizinho. Não é que eu gostava dele mais do que os outros. Só que facilitava, porque trabalhei para ele. Tinha minhas medidas. No princípio, fui contra o filme. Houve várias interpretações (de Cyrano). Eu queria filmes mais modernos. Era um filme de época, o mais caro da França (notícias registram 15 milhões de euros).

Que iguarias brasileiras você apresentou aos franceses?
Várias. Pão de queijo e guaraná até hoje me pedem.

Lembra de algo que tenha apresentado a Jacques Chirac?
Forneci cachaça para ele por 14 anos. Discretamente. Hoje posso falar. Ele conheceu a cachaça em uma visita ao Brasil (presidente da França de 1995 a 2007, Chirac visitou o Brasil em 1997, no governo FHC e em 2006, no mandato de Lula). Ele me convidou para acompanhá-lo em sua comitiva por eu ser franco-brasileira. Ficou encantado com uma caipirinha servida e me perguntou do que era. Passei a mandar cachaça para ele todo mês. Não era difícil. Mineiro gosta de cachaça.