Alessandra Montagne: ‘Quero que a pessoa saia dali com o espírito cheio de obras de arte’

Do Vidigal a Paris, chef brasileira se prepara assumir restaurante no museu do Louvre, na capital francesa.

Anne Claire HERAUD (5)Do Vidigal a Paris, chef brasileira se prepara assumir restaurante no museu do Louvre, na capital francesa.

Nascida na comunidade do Vidigal, no Rio de Janeiro, Alessandra Montagne foi, ainda pequena, viver com os avós em Poté, Minas Gerais. Aos 22 anos, decidiu ganhar o mundo e se mudou para Paris, na França.

A cozinha sempre teve um espaço afetivo em sua vida, mas demorou a ser vista como negócio e oportunidade profissional. Hoje, a chef de 46 anos está à frente de dois restaurantes que se tornaram referência na Cidade Luz, o Tempero e o Nosso. Agora, a convite do chef Alain Ducasse, Alessandra se prepara para assumir um dos restaurantes do museu do Louvre.

Na expectativa de ganhar o paladar e, principalmente, o coração de milhares de turistas que visitam o lugar todos os dias, Alessandra compartilha sua histórias e suas expectativas em entrevista exclusiva à equipe da Robb Report Brasil.

1. Alessandra, a cozinha entrou muito cedo na sua vida, ainda no interior de Minas. Como você entendeu que isso poderia se tornar uma profissão e um negócio?

Na verdade, eu nunca pensei em fazer da cozinha uma profissão. Eu sempre adorei cozinhar porque minha vó me ensinou a cozinhar muito cedo. Bem pequenininha eu já sabia fazer galinha, arroz, feijão, todos os legumes da horta… Eu tinha aquele prazer, sabe, de fazer os legumes bem fresquinhos e tal. Mas nunca passou pela minha cabeça ter um restaurante e fazer disso uma profissão. Lembro que a primeira vez que eu fiz comida na França para vender, foi uma feijoada em um festival de música. Apareceu essa oportunidade e eu fiquei com vergonha de cobrar as pessoas. Fiquei com tanta vergonha quando a pessoa me deu o dinheiro que pedi para quem estava me acompanhando dar o troco. Fiquei toda sem graça, sabe? Comer, para mim, é como beber água, e não fazia sentido cobrar alguém pra dar um copo de água. Então realmente nunca tinha pensado em fazer disso uma profissão.

2. Sua formação enquanto chef tem base francesa. Como a influência e o tempero brasileiro entram nesse contexto?

Quando cheguei na França, eu fazia aquela cozinha intuitiva, sem as bases e códigos da cozinha francesa. Aí entrei numa escola para aprender como fazer a cozinha francesa de verdade, como me comportar em uma cozinha profissional, qual o vocabulário desse lugar. Eu queria fazer uma imersão a 100% e aprender a base muito bem. Aí aprendi a cozinha francesa bem “Escofier”. Meu primeiro emprego foi com uma chef francesa casada com um cara de Hong Kong, então ela fazia uma cozinha francesa com mestiçagem asiática. Eu queria ver e entender como ela fazia essa mestiçagem com a cozinha de outro país sem desnaturalizar e respeitando os códigos da cozinha francesa, porque eu queria fazer isso com o meu país, com as minhas lembranças de cozinha brasileira, com meu temperinho da roça. Mas continuar respeitando a cozinha francesa sem transformá-la; fazer algo diferente, colocando um pouco de mim mesma, mas sempre respeitando a base.

Aprendi, então, com essa chef, que se chama Adeline Grattard (o restaurante dela é bem conhecido na França, se chama Yam’Tcha, uma estrela Michelin). Fiquei com ela um tempo, depois trabalhei com o William Ledeuil, que é um francês que também tem uma estrela Michelin e é apaixonado pelos países do nordeste asiático, como a Tailândia. Eu queria ver como ele integrava essa paixão. Foi superinteressante e me inspirou muito. Aprendi muito com esses dois chefs.

3. Como você foi recebida pelo público francês com o Tempero?

Eu fui muito bem recebida pelo público francês quando abri o Tempero, em 2012. Eu nem  estava esperando. Abri um restaurantezinho e trabalhava sozinha com o Olivier, pai da minha filha. Pensei que não ia ninguém, então não peguei uma pessoa para o salão, não peguei uma pessoa pra lavar louça, porque pensava “ah, não vai vir ninguém, então a gente vai dar conta de fazer tudo”. E não. No dia que eu abri, o restaurante encheu, tinha fila na porta. E eu não entendi como foi possível. Eu acho que esse sucesso que veio muito rápido e que contribuiu para as pessoas voltarem é porque eles gostavam não somente da comida, mas do ambiente. Porque é fácil a pessoa ir ao restaurante. O complicado é o cliente voltar. Você só sabe que realmente entregou um trabalho de qualidade quando o cliente volta. E eu sempre sou muito sorridente porque fico tão feliz de as pessoas virem comer no meu restaurante, fico tão agradecida! Porque tem 15 mil restaurantes em Paris, uma concorrência muito grande. Tem muito restaurante muito bom e eles escolhem o meu? Nossa, eu agradeço realmente o cliente por isso. E as pessoas ficavam tocadas porque aqui na França o serviço é frio, eles não têm esse hábito. Então tem essa parte de se sentir bem na minha casa com que os clientes sempre voltassem - porque eu trato o restaurante como minha casa. Quero que eles se sintam em casa, que fiquem à vontade. E isso agradou muito.

4. Você pode falar mais sobre o Nosso? O restaurante segue de portas abertas, mesmo com seu novo desafio?

O Nosso foi o projeto da minha vida. Quando fechei o Tempero, em fevereiro de 2020, foi para abrir o Nosso. O último serviço do Tempero foi dia 14 de fevereiro e eu assinei a compra do Nosso dia 1 de março. E aí veio a crise sanitária e foi um momento muito difícil porque eu perdi tudo, tudo. Eu não tinha trabalho, estava tudo fechado. Então eu me reinventei: comecei a estudar e arrumei outro trabalho porque precisava, então fui trabalhar na indústria farmacêutica. Mas falei: “Assim que os restaurantes abrirem, eu vou abrir o meu, eu vou voltar.” Era aquele desejo, aquela fome, aquela vontade, sabe? E deu muito certo. Eu consegui abrir o Nosso com muita dificuldade, mas igual ao Tempero, ele encheu muito rápido, com muita gente o tempo todo. Foi uma história muito bonita, de amor. Eu renasci das cinzas. Aí depois eu reabri o Tempero em outro endereço. Então hoje eu tenho o Tempero, que virou um empório de vinhos e bistrô, e o Nosso, onde a gente está fazendo uma comida mais gastronômica.

Anne Claire HERAUD (3)Alessandra Montagne também está à frente de seus próprios negócios, os restaurantes Tempero e Nosso, sucessos na Cidade Luz.

5. Como foi o convite para estar à frente de um dos restaurantes do Louvre?

O convite do Alain Ducasse foi inesperado, eu não estava nem sonhando que isso iria acontecer e do nada eu recebo um telefonema. Ele sempre liga de um número desconhecido. Aí eu não queria atender, mas acabei atendendo (ri).

“Alain, por que você não usa seu número, pelo amor de deus? Eu quase que não atendo!”. Aí ele disse que me “ligou porque estava escolhendo os chefs que farão parte da “geração Ducasse”, que levará meu legado à frente. Você faz parte disso e eu tenho um projeto no Museu do Louvre pra te propor. Não precisa me responder agora, você tem tempo pra pensar. Me liga quando tiver pensado.”

E eu disse: “não, chef, eu já pensei, eu quero”. “Mas você não quer saber quanto vai ganhar?” “Não, chef, não quero saber. Eu quero fazer esse projeto com você, é óbvio!”. Ele falou que o diretor financeiro dele me ligaria, eu assinaria uns papéis, contrato de confidencialidade etc., e no dia seguinte tudo isso foi feito, fui visitar o Louvre e ver onde era o restaurante, a gente já começou a falar de coisas importantes e, pronto: aqui estamos hoje!

6. O que isso representa para você e o que espera entregar aos clientes?

Isso representa uma vitória gigante para mim, uma super conquista. No começo eu não estava entendendo muito o que estava acontecendo, a ficha demorou muito a cair. Estou muito feliz. Quero muito entregar uma comida boa no Louvre, uma comida que os clientes comam e fiquem felizes. Restaurante em museu é diferente porque o público é na maioria de turistas, pessoas que talvez só passem pelo Louvre uma vez na vida. Então quero que a pessoa saia dali com o espírito cheio de obras de arte, alimentada nos dois sentidos: o espiritual e intelectual, porque você aprende muito, mas também com a barriguinha cheia e aquele sentimento de a experiência ter feito bem para o seu corpo também, graças a um almoço gostoso que a gente vai proporcionar.

7. Quais são seus próximos planos que pode compartilhar conosco?

O plano agora é fazer a coisa acontecer: abrir o restaurante do Louvre, o Nosso continuar crescendo, a equipe continuar bem e feliz. É uma luta no dia a dia fazer com que todos fiquem bem e achem o equilíbrio. Já é um projeto de vida fazer com que o business continue funcionando e tentar, no meio disso tudo, achar um equilíbrio para a minha vida pessoal também.