Meu jantar com Prince Philip

Com a morte do duque de Edimburgo, aos 99 anos, a empresária Carolina Andraus relembra a extraordinária experiência de sentar-se ao lado do marido da rainha Elizabeth em um banquete no Palácio de Buckingham.

_117171500_duke_976_gettyimages-75980982 Príncipe Philip, ou o duque de Edimburgo. (Foto: BBC)

Receber a notícia da morte, aos 99 anos, de um dos grandes homens da nossa era foi como sentir passar um sopro da vida. E uma sensação de vazio, onde não existe lugar para a tristeza. Afinal, se existiu uma vida vivida na sua plenitude foi a dele. Se eu pudesse defini-lo, diria que o príncipe Philip, ou o duque de Edimburgo, foi em sua essência um feminista. Apoiou magnificamente uma das mulhe- res mais poderosas de todos os tempos. Ele o fez sem perder sua força patriarcal na família. E representou o maior exemplo de que homens e mulheres são mui- to mais fortes quando se apoiam mutuamente. Philip mostrou ao mundo uma vida de serviço e charme, di- ligentemente cumprindo sua agenda ao lado da rainha Elizabeth II até os 96 anos de idade.

Senti um enorme encantamento pelo príncipe, en- tão com 94 anos: a força mental, a voz, o discurso, a forma de ver o mundo, o carisma e a elegância. Serviu, vibrou, quebrou regras, e viveu muitas delas sem per- mitir que seu espírito se encaixotasse em sua posição. Viveu em privilégio, mas em grande disciplina e força do dever a ser cumprido. Teve um espírito livre e, mais do que nunca, uma essência à frente do seu tempo.

Os convites para jantar no Palácio de Buckingham aconteceram porque o príncipe aceitou ser patrono de um projeto do Museu Conservacionista idealizado por Sebastian Brooke, meu primo inglês, artista, escultor, que conquistou o apoio de Philip ao projeto de esculpir espécies em extinção na Ilha de Portland. Prince Philip, como toda a família real, tinha uma ligação forte com a natureza e o meio ambiente.

Recebi os convites com entusiasmo, voando imediatamente para Londres. Foram dois jantares no Palácio de Buckingham, dois anos seguidos, 2014 e 2015, com impacto na comunidade científica e na cena social britânica. O primeiro, quando conheci o príncipe, pouco conversamos. Já no segundo, vivi momentos inesque- cíveis. Entre os convidados ilustres estavam o ator Harrison Ford, a socialite Jemima Khan, além de cientistas, empresários e filantropistas ligados ao conservacionis- mo, sentados em uma magnífica mesa para 80 pessoas, placé meticulosamente, e com a mais linda prataria, flores e arranjos de frutas, em um salão com paredes e cortinas de seda brocada vermelha, com retratos lin- díssimos de reis e rainhas, em tamanho natural. Agora imagine-se sentar à direita dele: his royal highness.

A chegada ao Palácio exige estudo do protocolo real, passado aos convidados. Qualquer tipo de foto ou celular é proibido. Entramos pela mesma entrada que assis- timos à Família Real no casamento de William & Kate. Subimos uma escadaria, com tapetes vermelhos, até a galeria do andar superior. Chegamos a uma sala mais intimista, onde interagimos com os outros convidados. Depois de 15 minutos, quando já estávamos bebendo champanhe, chega sua alteza real, prince Philip.

philipO príncipe, em retrato oficial a óleo de 2017. (Foto: Ralph Heimans/Royal Collection)

O príncipe conversou com cada um dos convidados, sorrindo com perguntas assertivas, tendo claramente recebido um briefing de cada convidado. Fazia-se interessado por cada um, olhos nos olhos. Sinal de grandeza, e dica para pessoas que acham que a superioridade as faz intocáveis. Quando o príncipe se dirigiu a mim, tive a grata surpresa de receber um caloroso aper- to de mãos. Já tínhamos nos conhecido no jantar no ano anterior, quando do lançamento do projeto do museu. Como entusiasta das artes, eu, a prima bra- sileira, sempre estive ligada à minha família british e em especial ao meu primo Dan Brooke, que idealizou e liderou a estruturação e o levantamento de fundos do projeto, além de organizar os jantares no Palácio. De família tradicional inglesa, o pai deles foi ministro da Defesa da Irlanda do Norte na era de Margare- th Thatcher, além de ter sido membro da House of Lords por muitas décadas, o que trouxe uma proxi- midade com a família real. Daí os generosos convi- tes, me trazendo mais um pedacinho do mundo eu- ropeu e das tradições old school.

Depois do aperto de mão, um sorriso cheio de ca- risma e alguns minutos de conversa sobre o projeto, o príncipe continuou em seu protocolo de conversar com todos os presentes. Após 30 minutos, e todos serem devidamente cumprimentados, os salões se abriram para a magnífica mesa de jantar. Tive uma enorme surpresa quando percebi que o Palácio havia decidido me colocar sentada do lado direito do prín- cipe. Oh my God!!! Para aqueles que não conhecem as rígidas regras de etiqueta, o lado direito dos hosts, ou donos da casa, é o lugar de maior importância da mesa, seguido do lugar à esquerda, o segundo mais importante na hierarquia de “placement”.

Sou levada à cadeira ao lado do príncipe, e todos ficamos parados em frente aos nossos lugares até que o duque de Edimburgo puxa a minha cadeira e faz um gesto para que todos se sentem. Todos à mesa, com os copeiros circulando, ou alguns dos homens mais cavalheiros e atentos, puxando as cadeiras das mu- lheres presentes. O príncipe se levanta, e todos se le- vantam respectivamente. Em respeito à rainha é feito um brinde e uma menção honrosa de agradecimento seguido de um coletivo “long live the queen!”.

Eu usava um vestido Lanvin de um ombro, de seda lavada cor champanhe com toque rosé, que remetia a uma veste grega. Escolhi o traje pensando no príncipe, que, de família real grega e dinamarquesa, imaginei que apreciaria. Ao me sentar, coloco a minha clutch feita da mesma seda na parte de trás do assento da minha cadeira. Respiro sem acreditar onde estou. E em poucos segundos a minha bolsa cai no chão, fazendo um barulho que chamou a atenção do príncipe e o fez virar imediatamente o olhar.

Pensei: minha primeira gafe real! Não sabia o que fazer. Mas a sensação durou pouco. O príncipe fez si- nal para pegarem a minha bolsa, entregue nas minhas mãos por um copeiro usando luvas brancas impecá- veis. O príncipe imediatamente olha para mim, faz um gesto, esticando seu braço para a frente do meu lugar, entre copos e flores, e diz: “Leave it here”, com um sorriso que só os grandes homens acostumados a apoiar grandes mulheres sabem dar. Comecei a en- xergar além do título e do protocolo. Vi a pessoa. E dei partida à minha viagem a uma nova profundida- de de entendimento daquele homem fascinante. Ini- ciamos uma conversa cheia de charme, discussões geopolíticas, e troca de visão de mundo. O tempo, com sua relatividade, me levou a outro espaço, como se as pessoas em torno deixassem de existir.

O príncipe começou contando da viagem oficial que ele e a rainha fizeram à América do Sul no fim dos anos 60 (A vinda ao Brasil foi em novembro de 1968, um mês antes do país entrar na fase mais dura da ditadura militar com o decreto do AI-5, em dezembro daquele ano. Em visita de 11 dias, Elizabeth II e Philip conheceram o Maracanã, homenagearam Pelé e foram recebidos em jantar pelo presidente Costa e Silva): “É um pedaço muito bonito e exótico do mundo, com uma natureza exuberante”, ele definiu. Relatou que visitaram nessa época todos os países da região. Fui percebendo a riqueza de ter acesso a tantas informa- ções e líderes mundiais em mais de 70 anos ao lado da rainha da Inglaterra, e como a família real construiu um trabalho de diplomacia internacional na história. Os pratos eram servidos: salada de caranguejo, segui- da por três raviólis. E o prato principal: carne com legumes, delicioso e sem ostentação. Os quatro jogos de talheres, que poderiam ser assustadores, deixa- vam a mesa mais imponente. Cada prato, da entrada à sobremesa, foi servido com um vinho especial. Na sobremesa, frutas que serviam de decoração para a mesa foram passadas pelos copeiros, e um doce deli- cado, com creme inglês feito com baunilha fresca.

Os gestos, a forma de falar e olhar, impressio- navam. Estávamos em um jantar formal, black-tie, mas a conversa fluía com leveza. Falamos de políti- ca mundial, do perfil político com viés socialista que vinha crescendo na América do Sul em especial, da falta d’água que vinha, pela primeira vez, causando o desconforto dos racionamentos no estado de São Paulo em 2014. Falamos da seca no Nordeste e sobre o programa Bolsa Família, que em certo momento, sete anos atrás, chegou a beneficiar direta ou indi- retamente 120 milhões de pessoas, o dobro da população inglesa. “Bem, é insustentável uma política social que mantém uma população desse tamanho. O que um país precisa para crescer é educação e infra- estrutura”, ele comentou. Opiniões à parte, falamos animadamente durante o jantar, interrompidos quan- do protocolarmente o príncipe, na troca de pratos, conversava com um importante geneticista sentado à sua esquerda. O duque de Edimbugo parecia tam- bém impressionado e surpreso, conversando de igual para igual com a improvável sobrinha brasileira do lord Peter Brooke, trocando ideias sobre estatísticas e dados geopolíticos.

Tive a sensação de que sua alteza usou de toda empatia e gentileza para demonstrar aprovação à minha inusitada companhia. E estava, sim, se divertindo. Antes da sobremesa, o príncipe se levanta e discursa sobre o projeto do museu que meu primo encabeça. Falou sobre a Ilha de Portland, onde o projeto seria desenvolvido e de onde saiu Portland Stone, as pedras das fachadas históricas de Londres. Destacou a seriedade de deixarmos um legado para as novas gerações onde espécies em extinção sejam conhecidas e lembradas, que possamos perceber a riqueza perdida e, assim, atentarmos para espécies em situação delicada de sobrevivência. O discurso terminou com uma provocação: “There are too many people in the planet”. Na sua visão, isso seria uma das fontes do desequilíbrio. Todos riram do senso de hu- mor de Philip, que dominava a arte de quebrar proto- colos. Dizia o que pensava, sem desestabilizar a ins- tituição da monarquia. Para finalizar, um cafezinho. E Philip, aos 94 anos, tomou seu café. Não resisti e perguntei se realmente ele tomaria café e conseguiria dormir bem à noite. Com elegância, ele não pensou nem um segundo: “But of course”. Minutos depois com o jantar cronometrado, o príncipe se levanta, faz o último brinde à rainha, e se retira.

Com a sua morte, termina uma era de homens de grande elegância e força. Philip, como poucos homens na história, soube fortalecer uma grande mu- lher. E dar apoio, sem se deixar diminuir, para que ela exercesse o seu poder em plenitude. Sendo mais nobre que a própria rainha, Philip nasceu e cresceu no exílio depois de a família real grega ter sido ex- pulsa e perdido a monarquia na Grécia. Conheceu o privilégio e a perda desde criança. Isso ajudou a for- mar um homem interessantíssimo, que sabia como se conectar com as pessoas com sagacidade. O du- que de Edimburgo soube ocupar o seu espaço. Sem ele, a rainha provavelmente não teria conseguido ser essa fortaleza ao longo do maior reinado da história de um monarca. Deixo aqui a homenagem ao grande homem que tive o privilégio de conhecer, reforçando a crença de que podemos ser mulheres fortes e acreditar que grandes homens podem ser parte im- portante de nossas vidas, com cavalheirismo, força, carisma e senso de humor.